sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

O Pelicano - Adélia Prado

O nascimento do poema 

O que existe são coisas,
não palavras. Por isso
te ouvirei sem cansaço recitar em búlgaro
como olharei montanhas durante horas,
ou nuvens.
Sinais valem palavras,
palavras valem coisas,
coisas não valem nada.
Entender é um rapto,
é o mesmo que desentender.
Minha mãe morrendo,
não faltou a meu choro este arco-íris:
o luto irá bem com meus cabelos claros.
Granito, lápide, crepe,
são belas coisas ou palavras belas?
Mármore, sol, lixívia.
Entender me sequestra de palavras e de coisa,
arremessa-me ao coração da poesia.
Por isso escrevo os poemas
pra velar o que ameaça minha fraqueza mortal.
Recuso-me a acreditar que homens inventam as línguas,
é o Espírito quem me impele,
quer ser adorado
e sopra no meu ouvido este hino litúrgico:
baldes, vassouras, dívidas e medo,

desejo de ver Jonathan e ser condenada ao inferno.

A Batalha

Perdi o medo de mim. Adeus.
Vou às paisagens do frio atrás do Jonathan.
Deve ser assim que se vive,
na embriagues deste vôo
no rumo certo da morte.
Amo Jonathan.
Eis aí o monocórdico, diarréico assunto.
‘Ele quer te ver’, alguém me disse no sonho.
E desencadearam-se as formas onde Deus se homizia.
Pode-se adorar tufos de grama , areia,
não se descobre donde vem os oboés.
Jonathan quer me ver.
Pois que veja.
O diabo uiva algemado nas profundezas do inferno,
enquanto eu
tiro o corpo da roupa.


A Terceira Via

Jonathan me traiu com uma mulher
que não sofreu por ele
um terço do que eu sofri;
uma mulher turista espairecendo na Europa.
Jonathan é bastante tolo.
Estou sem saber se me mudo
para alguém mais ladino,
se espero Jonathan crescer.
Sem desgastar-me, sem gastar um tostão
o moço oferece-me pensamentos diários
com irresistível margem de perigos:
posso ficar tísica,
posso engordar,
posso entender de física,
posso jejuar
produzindo sua imagem na hora mais quente do dia.
Ismália me diz: 'Deus é um tijolo,
está aqui no nariz do meu cachorro.
Eu sou puro pecado'.
E imediatamente come docinho de aletria
com descansada certeza:
'Irei salvar-me porque Deus me ama'.
Não tenho o peito de Ismália
pra chegar perto de Deus.
Por isso fico granindo
e chego perto dos homens,
cheiro a camisa de Pedro,
o travo ingrato de Jonathan.
Todos viram que minha boca secou
quando disse muito prazer e desfaleci na cadeira.
O amor me envergonha.
Da geração da cachaça,
do é ou não é,
do ou casa ou vai pro convento,
não posso ser gay e dizer: depende,
vou ver, vou tratar do seu caso.
Comigo é na pândega
ou na santidade mais rigorosa.
Eu não servia para ter nascido,
para comer com boca, andar com pés
e Ter dentro de mim oito metros de tripas
desejando a filigrana de tua íris
cuja cor não digo para não estragar tudo
e novamente ficar coberta de ridículo.
Sei agora, a duras penas,
porque os santos levitam.
Sem o corpo a alma de um homem não goza.
Por isso Cristo sofreu no corpo a Sua paixão,
adoro Cristo na Cruz.
Meu desejo é atômico,
minha unha é como meu sexo.
Meu pé te deseja, meu nariz.
Meu espírito – que é alento de Deus em mim – te deseja
pra fazer não sei o quê com você.
Não é beijar, nem abraçar, muito menos casar
e ter um monte de filhos.
Quero você na minha frente extático
– Francisco e o Serafim, abrasados –,
e eu para todo o sempre
olhando, olhando, olhando...

Caderno de Desenho

Quem verazmente se importa
de que esteja tão abatida com as respostas do oráculo?
Ele me ama? Perguntei.
Por quatro vezes respondeu silêncio, conflito, infortúnio e outra vez silêncio.
Terá Vosso amor, ó Deus, tanta beleza,
Vós que não tendes mãos, nem pés,
nem aquele nariz perfeito
por quem ardo até a última estrela?
Se Jonathan me amasse...
Mas quem me ama é João
e amo Jonathan desde os 12 anos,
desde a única boa lembrança de irmã Guida
que ensinava desenho,
as formas escapando de conselhos, doutrinas,
mais antigas que o pai, a mãe,
mais antigas que o avô,
reclamando de mim uma providência,
para que perdurassem, ficassem ali comigo no caderno.
Eu desenhava mal entusiasmadamente,
furando o papel com o lápis,
querendo expulsar de mim, hoje sei
- e queria mais não saber -,
aquela beleza mortal.
Eu lutava com o Anjo,
com o Mensageiro que nunca mais me deixou.
Que nome tem o que não morre?
O nome de Deus é qualquer,
pois quando nada responde,
ainda assim uma alegria poreja.

Sibilação

Na falha do dente mesma
ou entre ela e a estrela vermelha sobre o rio
cabe aviões e perguntas.
Fazem tediosas sentenças
sobre meu vestido e cabelos
enquanto eu faço um livro
que, segundo comadre minha,
'deixa muitas recordações'.
Meu aspecto campônio
já perturbou um moço refinado
e passei maus bocados
com minha mãe me infernizando o ouvido:
'vai arear seus pezinhos à-toa,
esse tal de Notajan
casa é com moça rica'.
Preferível seu ódio
a ouvir o nome querido
massacrado em sua boca.
Ó Jonathan, as palavras me matam,
as perfeitas e as cruas.
Milho, pó de café, sabão,
minha pobre mãe me preparou pra vida,
este vale de lágrimas.
Vale de lágrimas! Que palavra estupenda!
Assim diria, se soubesse,
em toda língua humana conhecida,
vale de lágrimas!
Os olhos da humanidade se exaurindo,
enchendo gargantas,
fossos entre os penhascos,
até virar um mar,
um mar salgado e amargo.
Mar, não, até virar um rio,
porque dizer assim vale de lágrimas não é desesperado como o mar,
nem tão imenso.
O rio tem margens,
margens espraiam-se,
vegetação, animais, guardadores de gado,
o grito é ouvido.

O Despautério

Insinua-se a tentação de rejeitar a forma
e não sei se vem do Bem ou do Mal.
Um enfado pelo que só se mostra
à força de palavras desse
e não de outro jeito dispostas.
É quando mais sei que não sou Deus.
Jonathan, Jonathan,
minha mãe não aprende a soletrar seu nome,
seu ódio desloca as tônicas
e mais ainda os motivos
de seus terríveis conselhos.
Também quero infringir.
Quem ama mata o cacófato,
acha bonita a ruidosa máquina do corpo.
-Tens dormido bem, meu pai?
Muito bem, respondia
informando inocente sobre galos,
choro noturno de recém-nascidos.
Mas este relato é belo.
Se a mãe tiver razão estou perdida.
Sempre disse: a poesia é o rastro de Deus nas coisas
e cantava o rastro,
quando é aos pés que se deve adorar.
Pobre beleza esta,
serva agrilhoada,
passarinho cego trinando.
No entanto está escrito: "sois deuses!"
E somos.
Quero me oferecer à divindade
na mais perfeita pobreza
e ela só me recebe
na mais perfeita alegria.
Dentro da lâmpada acesa
o núcleo parece um ovo,
parece um pintinho novo.
Preciso mentir um pouco
para que o ritmo aconteça
e eu própria entenda o discurso.
Faça-se a dura vontade
do que habita meu peito:
vem, Jonathan,
traz flores pra minha mãe
e um par de algemas pra mim

Raiva de Jonathan
Fui te procurar na rua e meti a cabeça no poste
sangrou, solucei, dormi, sonhei com astros movendo-se e formas vegetais humanizadas
O corpo é pagão e assim deve ficar para que lembre Deus constantemente seu dever de salvar-nos
Me desgosta este arpejo de líquidos no seu abdomen branco, homem mortal e cruel
Sai pra lá, cachorrinho imbecil, vai passar fome hoje, o osso é meu
As más companhias te perdem, meu amor, e exaurem teu poder de construir bons versos
Você se distrai, me esquece, dá entrevistas pernósticas
Um ovo de duas gemas ao mais frio dos homens há de comover, não a mim, não hoje
que não quero saber da barra grega
Desenho mal, é verdade, mas precisava irmã Gui exibir-se às minhas custas?
Se Brígida me provocar vou lhe dizer assim como um doutor: o mal que você faz é inconsciente, Brígida
Só isso vai lhe humilhar tanto quanto desejo, limpar a gosma desses versos horrendos
Rubor, febre, pudicícia, minha honra feminina em convulsão
percutindo em meu peito outra sônica, a retornada cíclica paixão
Sai travesti poético, arre, credo
Mas como eu ia dizendo, vem, Jonathan,
qualquer hora é hora, o que vale é ser feliz
mas vale um pássaro na mão.
Vem, oh, galante,
do que dois avoando.
Imploro-te, mas vem logo, desgraçado, senão eu te furo
e não tou nem aí.
Vestida de noiva vais me achar discursando com um repolho na mão:
querida massa, exelentíssima massa, vais ficar tão bonito no caixão
Só uma coisinha à toa me detém de cometer o crime
como será depois, quando me deparar com o desmazelo
sua desgraciosa, úmilima, utilíssima forma?
E a quem servirá a palavra de Isaías que escreveu para mim o seu oráculo:
"dêem forças aos joelhos vacilantes, o coxo saltará como um cabrito"
Hein, Jonathan? Responde!

Pranto para comover Jonathan

Os diamantes são indestrutíveis?
Mais é meu amor.
O mar é imenso?
Meu amor é maior,
mais belo sem ornamentos
do que um campo de flores.
Mais triste do que a morte,
mais desesperançado
do que a onda batendo no rochedo,
mais tenaz que o rochedo.
Ama e nem sabe mais o que ama.

O Sacrifício

Não tem mar, nem transtorno político,
nem desgraça ecológica
que me afaste de Jonathan.
Vinte invernos não bastaram
pra esmaecer sua imagem.
Manhã, noite, meio-dia,
Como um diamante,
meu amor se perfaz, indestrutível.
Eu suspiro por ele.
Casar, ter filhos,
foi tudo só um disfarce, recreio,
um modo humano de me dar repouso.
Dias há em que meu desejo é vingar-me,
proferir impropérios: maldito, maldito.
Mas é a mim que maldigo, pois vive dentro de mim
e talvez seja Deus fazendo pantomimas.
Quero ver Jonathan e com o mesmo forte desejo
quero adorar, prostrar-me,
cantar com alta voz Panis Angelicus.
Desde a juventude canto.
Desde a juventude desejo e desejo
a presença que para sempre me cale.
As outras meninas bailavam,
e eu estacava querendo
e só de querer vivi.
Licor de romãs,
Sangue invisível pulsando na presença Santíssima.
Eu canto muito alto:
Jonathan é Jesus.

O Pelicano
Um dia vi um navio de perto.
Por muito tempo olhei-o
com a mesma gula sem pressa com que olho
Jonathan:
primeiro as unhas, os dedos, seus nós.
Eu amava o navio.
Oh! eu dizia. Ah, que coisa é um navio!
Ele balançava de leve
como os sedutores meneiam.
À volta de mim busquei pessoas:
olha, olha o navio
e dispus-me a falar do que não sabia
para que enfim tocasse
no onde o que não tem pés
caminha sobre a massa das águas.
Uma noite dessas, antes de me deitar
vi - como vi o navio - um sentimento.
Travada de interjeições, mutismos,
vocativos supremos balbuciei:
Ó Tu! e Ó Vós!
- a garganta doendo por chorar.
Me ocorreu que na escuridão da noite
eu estava poetizada,
um desejo supremo me queria.
Ó Misericórdia, eu disse
e pus minha boca no jorro daquele peito.
Ó amor, e me deixei afagar,
a visão esmaecendo-se,
lúcida, ilógica,
verdadeira como um navio.


A Criatura

Quero ver Jonathan,
Aqui ou onde mora
Exilado de mim.
Está meio chuvoso e é domingo,
feito um domingo antigo,
quando Ormírio chegou com Antônia,
sua filha de criação,
e me deu um cacho de uvas.
Da mesma natureza é a saudade que sinto
por aquele domingo e por Jonathan.
Como Antônia era tola eu era feliz,
o eixo da terra girava devagar,
eu cantava
a propósito de tudo,
a música de que mais gostava.
Quando me apaixonei por Jonathan,
escrevia seu nome pela casa,
meu pai dizia: ‘o que é isso?’
é o nome de um príncipe, eu falava,
Pronuncia-se Narratanói e está nas
mil e uma noites…
Meu pai, plebeu
a quem certas palavras subjugavam,
orgulhava-se de mim
que lhe dava poder sobre os signos migrados.
Oh, Jonathan, descubro que te amo
desde o tempo da guerra,
quando os aliados batiam os alemães.
Vovô dizia usaliados
e até mamãe, imagine!
E principalmente eu:
‘usaliados’ vão ganhar a guerra’,
sabendo por divina inspiração:
‘o poder é de quem detém a palavra’.
Poder que ia usar contra você,
que teria minha mãe usado contra mim:
‘você é da classe operária,
ele é muito bonito,
vai te deixar sozinha!’
Não deixou minha mãe, como não me deixa
apesar dos pesares,
esta vocação para a alegria perfeita.
Vê, são passadas décadas
e é a mesma em mim
a prontidão para a chuva,
as goiabas verdes,
para o sol que ateia nos telhados
as labaredas brancas do meio-dia.
É como se estivésseis aqui
com meu pai, meu avô
Ormírio e o cacho de uvas,
como quando entoei impropriamente,
à véspera de um Natal o Tantum Ergo.
Que grande cortesã eu me ensaiava,
porque era uma orgia
aquela felicidade sobre nadas,
era tudo tão pobre.
Eu já amava Jonathan,
porque Jonathan é isto,
fato poético desde sempre gerado,
matéria de sonho, sonho,
hora em que tudo mais desce à desimportância.
Agora que me descido à mística,
escrevo sob seu retrato:
‘Jesus, José, Javé, Jonathan, Jonathan,
a flor mais diminuta é meu juiz.
Me deixem no deserto resgatada,
pedra que dentro é pedra,
sobre pedra pousada’.
Rimo por boniteza,
não é triste o que sinto.
‘A supliciada’ podíeis chamar a tais versos,
no entanto, confirmo, estou feliz,
feliz para o desperdício
do que busquei amealhar
e estava certa,
o que o tempo não rói.
Um mel derrama-se,
uma ave amorosa me alimenta.
Negro céu com relâmpagos
e esta doçura que não tem repouso.
São feitos para mim estes legumes,
mais que as flores são feitos para mim
que os converto no ventre em ouro simbólico.
Nada há mais parecido com o que sou
a não ser outro homem e outro mais
e mais outro homem.
A visão de um recém-nascido me transporta.
Experimento dizer: ‘dentro da terra
sobre os leitos de areia os lençóis d’água’;
é como ferir o peito com uma lança
estremeço de amor pelas torrentes,
como de amor por Jonathan.
Os peixes gostam de mim, os fetos.
Antes que o façam eu abraço os homens,
eu os desarmo,
como a abelha em seu afinco
trabalho para que entendam:
a vida é tão bonita,
basta um beijo
e a delicada engrenagem movimenta-se,
uma necessidade cósmica nos protege.
Os espíritos imundos confessavam o Cristo,
se enfiavam nos porcos confessando,
essa alegria nova me confessa,
a mesma, a antiga,
a de quando ganhei as uvas e chovia
e gostava de Antônia
aquela menina tola.
‘A ira bordeja como um peixe mau’
É só um verso bonito.
Não há como voltar deste país:
o homem à  janela canta
– sem ter costume – a melodiazinha.
Deus põe no céu o arco-íris,
uma palavra selada,
seu hieróglifo.
Não tenho mais tempo algum,
ser feliz me consome.

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