Laetitia Cordis
Sossegai um minuto para ver
o milagre:
está nublado o tempo, de
manhã
um pouco de frio e bruma.
Meu coração, amarelo como um
pequi,
bate desta maneira:
Jonathan,
Jonathan, Jonathan.
À minha volta
dizem:
'Apesar da névoa, parece que
um sol ameaça.'
Penso em Giordano Bruno
e em que amante incrível ele
seria.
Quero dançar
e ver um filme eslavo, sem
legenda,
adivinhando a hora em que o
som estrangeiro
está dizendo eu te amo.
Como o homem é belo,
como Deus é bonito.
Jonathan sou eu apoiada em
minha bicicleta,
posando para um retrato.
Quando ficam maduros
os pequis racham e caem,
formam ninhos no chão de
pura gema.
Meu coração quer saltar,
bater do lado de fora,
como o coração de Jesus.
HISTÓRIA
Me aflige que escrevam:
‘Foi em mil oitocentos e
tanto que apareceu
a primeira bicicleta.’
Preciso que seja eterna.
Deus entende o que digo,
Deus e os que lêem poemas
como penso em Jonathan.
Meu pai contando:
‘Meu avô contava que seu
tetravô
tinha uma bicicleta
engraçada
onde carregava os queijos,
também eternos,
e ovos, desde sempre
existentes.
Já usava este sobrenome que
você tem,
minha filha,
e que dará a seu filho, que
o dará a seu neto,
cordão plantado no umbigo do
Pai Eterno.’
Assim não corro perigo de
não ter conhecido Jonathan,
alegria da minha vida por
quem espero
“mais que o guarda pela
aurora”.
A história do homem é
pitoresca. As datas,
brinquedo de pesquisadores.
Quando Deus criou o mundo
criou junto a bicicleta e o
caminho relvado
onde Jonathan me espera para
esta bela seqüência:
à passagem dos amantes,
o capim florido estremece.
Opus Dei
As borboletas não desistem,
inconscientes de seu nome
impróprio.
As estações renovam-se sem
erro
e teimas ainda em te
certificares de que não é pecado dizeres:
Ó beleza, sois a minha
alegria.
Abre-te, Jonathan é apenas
um homem,
se lhe torceres o lábio
zombateira,
a lança dele reflui.
Um insecto esgota a razão
toda,
rói com a sabedoria as
sumas,
uma gota de seiva mata um
homem.
Portanto entrega-te,
ao que te faz tão bela
quando ris.
A ópera não é bufa,
é só um não-saber rasgado de
clarões.
Se Jonathan for Deus estarás
certa
e se não for, também,
porque assim acreditas
e ninguém é condenado porque
ama.
EM PORTUGUÊS
Aranha, cortiça, pérola
e mais quatro que não falo
são palavras perfeitas.
Morrer é inexcedível.
Deus não tem peso algum.
Borboleta é atelobrob,
um sabão no tacho fervendo.
Tomara estas estranhezas
sejam psicologismos,
corruptelas devidas
ao pecado original.
Palavras, quero-as antes
como coisas.
Minha cabeça se cansa
neste discurso infeliz.
Jonathan me falou:
‘Já tomou seu iogurte?’
Que doçura cobriu-me, que
conforto!
As línguas são imperfeitas
pra que os poemas existam
e eu pergunte donde vêm
os insetos alados e este afeto,
seu braço roçando o meu.
A Matéria
Jonathan chegou.
E o meu amor por ele é tão
demente
que me esqueci de Deus,
eu que diuturnamente rezo.
Mas não quero que Jonathan
se demore.
Há o perigo de eu falar
na presença de todos
uma coisa alucinada.
O que quer acontecer pede um
metro imprudente,
clamando por realidade.
Centopéias passeiam no meu
corpo.
Ele me chama Agnes
e fala coisas irreproduzíveis:
"entendo que uma jarra
pequena
com três rosas de plástico
possam inundar você de vida
e morte".
Você existe, Jonathan?
Formas
De um único modo se pode
dizer a alguém:
Não esqueço você.
A corda do violoncelo fica
vibrando
sozinha sob um arco
invisível
e os pecados desaparecem
como ratos flagrados
Meu coração causa pasmo
porque bate e tem sangue nele
e vai parar um dia e virar
um tambor patético se falas ao meu ouvido:
não esqueço você.
Manchas de luz na parede e
uma rosa pequena com três rosas de plástico
Tudo no mundo é perfeito.
E a morte é amor.
Poema Começado no Fim
Um corpo quer outro corpo.
Uma alma quer outra alma e
seu corpo.
Este excesso de realidade me
confunde.
Jonathan falando:
parece que estou num filme.
Se eu lhe dissesse você é
estúpido
ele diria sou mesmo.
Se ele dissesse vamos comigo
ao inferno passear
eu iria.
As casas baixas, as pessoas
pobres,
e o sol da tarde,
imaginai o que era o sol da
tarde
sobre a nossa fragilidade.
Vinha com Jonathan
pela rua mais torta da
cidade.
O Caminho do Céu.
A cicatriz
Estão equivocados os
teólogos
quando descrevem Deus em
seus tratados.
Esperai por mim que vou ser
apontada
como aquela que fez o
irreparável.
Deus vai nascer de novo para
me resgatar.
Me mata, Jonathan, com sua
faca,
me livra do cativeiro do
tempo.
Quero entender suas unhas,
o plano não se fixa, sua
cara desaparece.
Eu amo o tempo porque amo
este inferno,
este amor doloroso que
precisa do corpo,
da proteção de Deus para
dizer-se
nesta tarde infestada de
pedestres.
Ter um corpo é como fazer
poemas,
pisar margem de abismos,
eu te amo.
Seu relógio,
incongruente como meus
sapatos,
uma cruz gozosa, ó Felix
Culpa!
O Encontro
Jonathan,
se resolvermos que o céu é
este lugar onde ninguém nos ouve
quem poderá salvar-nos?
Quanto tempo resistiríamos
sem falar a ninguém deste acontecimento?
Acompanhei com os dedos o
desenho miraculoso do teu lábio
contornei-lhe as gengivas,
bati-lhe no dente escuro como em um cavalo
um cavalo meu na campina
pedi-lhe: faz com tua unha
um risco na minha cara
o amor da morte
instigando-nos como nunca vista a coragem
vamos morrer juntos antes
que o corpo alardeie sua mísera condição
agora, Jonathan, neste lugar
tão ermo, neste lugar perfeito.
A Seduzida
Por causa de Jonathan
minha idade regride.
Por certo morrerei
se insistir em só amar,
sem comer nem dormir.
Amor e morte são casados
e moram no abismo trevoso.
Seus filhos,
o que se chama Felicitas
tem o apelido de Fel.
O centro da luz é escuro
do negrume de Deus.
é sombra espessa de dia,
de noite tudo reluz.
Comigo os séculos porfiam
na encarnação de Jesus.
O MAIS LEVE QUE
O AR
O que me leva a Jonathan?
A bicicleta do sonho,
mais veloz que avião.
Anda no mar, encantada,
transpõe montanhas,
pára no portão florido.
Jonathan está no escritório
com a luz do abajur acesa.
Demoro um pouco a bater,
pro coração sossegar.
Jonathan me pressente
e
abre a cortina brusco,
brincando de me assustar.
As bicicletas são duas na planície.
Adivinha
Escolhe um mês,
falei à santa.
Ela escolheu outubro.
E também à menina a quem
pedi,
falou, sem saber, outubro.
Não pergunto a mais ninguém
pois será neste mês
que vou lavrar ouro bruto
encastelado em seu nome.
Pensava em Jonathan quando
armei
o brinquedo,
penso nele agora
fazendo o que sei melhor,
mandar mensagens de amor
com a força do pensamento:
Jonathan, escuta,
sou eu a mosca adejante:
junto às ruínas, em outubro.
Citação de Isaías
A matéria de Deus é seu
amor.
Sua forma é Jonathan,
o que dói e perece
e me diz, com tremor da
criação inteira:
"És preciosa aos meus
olhos,
porque eu te aprecio e te amo,
permuto reinos por ti".
Mais uma vez
Não quero mais amar
Jonathan.
Estou cansada desse amor sem
mimos,
destinado a tornar-se um
amor de velhos.
Oh! nunca falei assim -
amor de velhos.
Ainda bem que é mentira.
Mesmo que Jonathan me olvide
e esta canção desafine
como um bolero ruim,
permaneço querendo a
bicicleta holandesa
e mais tarde a cripta gótica
pra nossos ossos dormirem.
Ó Jonathan,
não depende de você
que a cornucópia invisível
jorre ouro.
Nem de mim.
Quero enfear o poema
pra te lançar meu desprezo,
em vão.
Escreve-o quem me dita as
palavras,
escreve-o por minha mão.
Bilhete de ousada donzela
Jonathan,
há nazistas desconfiados.
Põe aquela sua camisa que eu
detesto
- comprada no Bazar Marrocos
-
e venha como se fosse pra
consertar meu chuveiro.
Aproveita na terça que meu
pai vai com minha mãe
visitar tia Quita no
Lajeado.
Se mudarem de idéia, mando
novo bilhete.
Venha sem guarda-chuva –
mesmo se estiver chovendo -
Não agüento mais tio Emílio
que sabe e finge não saber
que te namoro escondido e
vive te pondo apelidos.
O que você disse outro dia
na festa dos pecuaristas
até hoje soa igual música
tocando no meu ouvido:
“Não paro de pensar em
você.”
Eu também, Natinho, nem um
minuto.
Na terça, às duas da tarde,
hora em que se o mundo
acabar eu nem vejo.
Com aflição,
Antônia
FIEIRA
Posso me esforçar à
vontade
que a letra não sai
redonda.
Deus me vê.
Não escrevo mais
cartas,
só palavrões no muro:
Foda-se. Morra.
Estou cansada de
dizer eu te amo.
Não tem começo nem
fim minha paciência.
Não paro de pensar em
Jonathan.
Detesto
escrita elegante.
As tragédias são doces.
Aprendi a falar desde
pequenininha.
Tudo que digo é vaidade.
É impossível viver
sem dizer eu,
palavra
a Deus reservada.
Não sei como ser humana.
Saberei, se Jonathan
me amar:
’que
unha forte!’,
‘você me lembra alguém’,
‘quase lhe mando um cartão’.
Migalhas,
Jonathan,
você
também vai morrer,
fala,
descansa meu coração.
A Santa Ceia
Começou dizendo: 'o amor...'
mas não pôde concluir
pois alguém lhe chamava.
'O amor...' como se me
tocasse,
falava só para mim,
ainda que outras pessoas
estivessem à mesa.
'O amor...' e arrastou sua
cadeira pra mais perto.
Não levantava os olhos,
temerosa
da explicitude do meu coração.
A sala aquecia-se
do meu respirar de
crepitação e luzes.
'O amor...'
Ficou só esta palavra do
inconcluído discurso,
alimento da fome que desejo
perpétua.
Jonathan é minha comida.
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