sábado, 25 de janeiro de 2014

A Faca no Peito - Adélia Prado

Laetitia Cordis

Sossegai um minuto para ver o milagre:
está nublado o tempo, de manhã
um pouco de frio e bruma.
Meu coração, amarelo como um pequi,
bate desta maneira:

                  Jonathan, Jonathan, Jonathan.
                  À minha volta dizem:

'Apesar da névoa, parece que um sol ameaça.'
                   Penso em Giordano Bruno
e em que amante incrível ele seria.
Quero dançar
e ver um filme eslavo, sem legenda,
adivinhando a hora em que o som estrangeiro
                             está dizendo eu te amo.
Como o homem é belo,
                   como Deus é bonito.
Jonathan sou eu apoiada em minha bicicleta,
                   posando para um retrato.
Quando ficam maduros
                            os pequis racham e caem,
formam ninhos no chão de pura gema.
Meu coração quer saltar,
bater do lado de fora,
                   como o coração de Jesus.

HISTÓRIA

Me aflige que escrevam:
‘Foi em mil oitocentos e tanto que apareceu
                                  a primeira bicicleta.’
Preciso que seja eterna. Deus entende o que digo,
Deus e os que lêem poemas como penso em Jonathan.
Meu pai contando:
‘Meu avô contava que seu tetravô
tinha uma bicicleta engraçada
onde carregava os queijos, também eternos,
e ovos, desde sempre existentes.
Já usava este sobrenome que você tem,
                                   minha filha,
e que dará a seu filho, que o dará a seu neto,
cordão plantado no umbigo do Pai Eterno.’
Assim não corro perigo de não ter conhecido Jonathan,
alegria da minha vida por quem espero
“mais que o guarda pela aurora”.
A história do homem é pitoresca. As datas,
                                  brinquedo de pesquisadores.
Quando Deus criou o mundo
criou junto a bicicleta e o caminho relvado
onde Jonathan me espera para esta bela seqüência:
à passagem dos amantes,
                             o capim florido estremece.

Opus Dei

As borboletas não desistem,
inconscientes de seu nome impróprio.
As estações renovam-se sem erro
e teimas ainda em te certificares de que não é pecado dizeres:
Ó beleza, sois a minha alegria.
Abre-te, Jonathan é apenas um homem,
se lhe torceres o lábio zombateira,
a lança dele reflui.
Um insecto esgota a razão toda,
rói com a sabedoria as sumas,
uma gota de seiva mata um homem.
Portanto entrega-te,
ao que te faz tão bela quando ris.
A ópera não é bufa,
é só um não-saber rasgado de clarões.
Se Jonathan for Deus estarás certa
e se não for, também,
porque assim acreditas
e ninguém é condenado porque ama.

EM PORTUGUÊS

Aranha, cortiça, pérola
e mais quatro que não falo
são palavras perfeitas.
Morrer é inexcedível.
Deus não tem peso algum.
Borboleta é atelobrob,
um sabão no tacho fervendo.
Tomara estas estranhezas
sejam psicologismos,
corruptelas devidas
ao pecado original.
Palavras, quero-as antes como coisas.
Minha cabeça se cansa
                          neste discurso infeliz.
Jonathan me falou:
           ‘Já tomou seu iogurte?’
Que doçura cobriu-me, que conforto!
As línguas são imperfeitas
                       pra que os poemas existam
e eu pergunte donde vêm
                os insetos alados e este afeto,
seu braço roçando o meu.

A Matéria

Jonathan chegou.
E o meu amor por ele é tão demente
que me esqueci de Deus,
eu que diuturnamente rezo.
Mas não quero que Jonathan se demore.
Há o perigo de eu falar
na presença de todos
uma coisa alucinada.
O que quer acontecer pede um metro imprudente,
clamando por realidade.
Centopéias passeiam no meu corpo.
Ele me chama Agnes
e fala coisas irreproduzíveis:
"entendo que uma jarra pequena
com três rosas de plástico
possam inundar você de vida e morte".
Você existe, Jonathan?

Formas

De um único modo se pode dizer a alguém:
Não esqueço você.
A corda do violoncelo fica vibrando
sozinha sob um arco invisível
e os pecados desaparecem como ratos flagrados
Meu coração causa pasmo porque bate e tem sangue nele
e vai parar um dia e virar um tambor patético se falas ao meu ouvido:
não esqueço você.
Manchas de luz na parede e uma rosa pequena com três rosas de plástico
Tudo no mundo é perfeito.
E a morte é amor.

Poema Começado no Fim


Um corpo quer outro corpo.
Uma alma quer outra alma e seu corpo.
Este excesso de realidade me confunde.
Jonathan falando:
parece que estou num filme.
Se eu lhe dissesse você é estúpido
ele diria sou mesmo.
Se ele dissesse vamos comigo ao inferno passear
eu iria.
As casas baixas, as pessoas pobres,
e o sol da tarde,
imaginai o que era o sol da tarde
sobre a nossa fragilidade.
Vinha com Jonathan
pela rua mais torta da cidade.
O Caminho do Céu.

A cicatriz

Estão equivocados os teólogos
quando descrevem Deus em seus tratados.
Esperai por mim que vou ser apontada
como aquela que fez o irreparável.
Deus vai nascer de novo para me resgatar.
Me mata, Jonathan, com sua faca,
me livra do cativeiro do tempo.
Quero entender suas unhas,
o plano não se fixa, sua cara desaparece.
Eu amo o tempo porque amo este inferno,
este amor doloroso que precisa do corpo,
da proteção de Deus para dizer-se
nesta tarde infestada de pedestres.
Ter um corpo é como fazer poemas,
pisar margem de abismos,
eu te amo.
Seu relógio,
incongruente como meus sapatos,
uma cruz gozosa, ó Felix Culpa!

O Encontro
Jonathan,
se resolvermos que o céu é este lugar onde ninguém nos ouve
quem poderá salvar-nos?
Quanto tempo resistiríamos sem falar a ninguém deste acontecimento?
Acompanhei com os dedos o desenho miraculoso do teu lábio
contornei-lhe as gengivas, bati-lhe no dente escuro como em um cavalo
um cavalo meu na campina
pedi-lhe: faz com tua unha um risco na minha cara
o amor da morte instigando-nos como nunca vista a coragem
vamos morrer juntos antes que o corpo alardeie sua mísera condição
agora, Jonathan, neste lugar tão ermo, neste lugar perfeito.

A Seduzida

Por causa de Jonathan
           minha idade regride.
Por certo morrerei
se insistir em só amar,
         sem comer nem dormir.
Amor e morte são casados
e moram no abismo trevoso.
Seus filhos,
o que se chama Felicitas
tem o apelido de Fel.
O centro da luz é escuro
                            do negrume de Deus.
é sombra espessa de dia,
de noite tudo reluz.
Comigo os séculos porfiam
na encarnação de Jesus.

O MAIS LEVE QUE O AR

O que me leva a Jonathan?
A bicicleta do sonho,
mais veloz que avião.
Anda no mar, encantada,
         transpõe montanhas,
         pára no portão florido.
Jonathan está no escritório
         com a luz do abajur acesa.
Demoro um pouco a bater,
         pro coração sossegar.
Jonathan me pressente
         e abre a cortina brusco,
         brincando de me assustar.
         As bicicletas são duas na planície.

Adivinha

Escolhe um mês,
falei à santa.
Ela escolheu outubro.
E também à menina a quem pedi,
falou, sem saber, outubro.
Não pergunto a mais ninguém
pois será neste mês
que vou lavrar ouro bruto
                   encastelado em seu nome.
Pensava em Jonathan quando armei
                                      o brinquedo,
penso nele agora
                   fazendo o que sei melhor,
mandar mensagens de amor
com a força do pensamento:
         Jonathan, escuta,
         sou eu a mosca adejante:
         junto às ruínas, em outubro.

Citação de Isaías

A matéria de Deus é seu amor.
Sua forma é Jonathan,
o que dói e perece
e me diz, com tremor da criação inteira:
"És preciosa aos meus olhos,
                   porque eu te aprecio e te amo,
permuto reinos por ti".

Mais uma vez

Não quero mais amar Jonathan.
Estou cansada desse amor sem mimos,
destinado a tornar-se um amor de velhos.
Oh! nunca falei assim -
amor de velhos.
Ainda bem que é mentira.
Mesmo que Jonathan me olvide
e esta canção desafine
como um bolero ruim,
permaneço querendo a bicicleta holandesa
e mais tarde a cripta gótica
pra nossos ossos dormirem.
Ó Jonathan,
não depende de você
que a cornucópia invisível jorre ouro.
Nem de mim.
Quero enfear o poema
pra te lançar meu desprezo,
em vão.
Escreve-o quem me dita as palavras,
escreve-o por minha mão.

Bilhete de ousada donzela

Jonathan,
há nazistas desconfiados.
Põe aquela sua camisa que eu detesto
- comprada no Bazar Marrocos -
e venha como se fosse pra consertar meu chuveiro.
Aproveita na terça que meu pai vai com minha mãe
visitar tia Quita no Lajeado.
Se mudarem de idéia, mando novo bilhete.
Venha sem guarda-chuva – mesmo se estiver chovendo -
Não agüento mais tio Emílio que sabe e finge não saber
que te namoro escondido e vive te pondo apelidos.
O que você disse outro dia na festa dos pecuaristas
até hoje soa igual música tocando no meu ouvido:
“Não paro de pensar em você.”
Eu também, Natinho, nem um minuto.
Na terça, às duas da tarde,
hora em que se o mundo acabar eu nem vejo.
Com aflição,
Antônia

FIEIRA

Posso me esforçar à vontade
que a letra não sai redonda.
                   Deus me vê.
Não escrevo mais cartas,
só palavrões no muro:
          Foda-se. Morra.
Estou cansada de dizer eu te amo.
Não tem começo nem fim minha paciência.
Não paro de pensar em Jonathan.
           Detesto escrita elegante.
           As tragédias são doces.
Aprendi a falar desde pequenininha.
         Tudo que digo é vaidade.
É impossível viver sem dizer eu,
     palavra a Deus reservada.
         Não sei como ser humana.
Saberei, se Jonathan me amar:
          ’que unha forte!’,
          ‘você me lembra alguém’,
          ‘quase lhe mando um cartão’.
                    Migalhas, Jonathan,
                    você também vai morrer,
                                                  fala, 
                    descansa meu coração.


A Santa Ceia

 Começou dizendo: 'o amor...'
mas não pôde concluir
pois alguém lhe chamava.
'O amor...' como se me tocasse,
falava só para mim,
ainda que outras pessoas estivessem à mesa.
'O amor...' e arrastou sua cadeira pra mais perto.
Não levantava os olhos, temerosa
                            da explicitude do meu coração.
A sala aquecia-se
do meu respirar de crepitação e luzes.
'O amor...'
Ficou só esta palavra do inconcluído discurso,
alimento da fome que desejo perpétua.
Jonathan é minha comida.


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