quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Terra de Santa Cruz - Adélia Prado

Amor

A formosura do teu rosto obriga-me
e não ouso em tua presença
ou à tua simples lembrança
recusar-me ao esmero de permanecer contemplável.
Quisera olhar fixamente a tua cara,
como fazem comigo soldados e choferes de ônibus.
Mas não tenho coragem,
olho só tua mão,
a unha polida olho, olho, olho e é quanto basta
pra alimentar fogo, mel e veneno deste amor incansável
que tudo rói e banha e torna apetecível:
caieiras, desembocaduras de desgostos,
idéia de morte, gripe, vestido, sapatos,
aquela tarde de sábado,
esta que morre agora antes da mesa pacífica:
ovos cozidos, tomates,
fome dos ângulos duros de tua cara de estátua.
Recolho tamancos, flauta, molho de flores, resinas, rispidez de teu lábio que suporto com dor
e mais retábulos, faca, tudo serve e é estilete,
lâmina encostada em teu peito. Fala.
Fala sem orgulho ou medo
que à força de pensar em mim sonhou comigo
e passou um dia esquisito,
o coração em sobressaltos à campainha da porta,
disposto à benignidade, ao ridículo, à doçura. Fala.
Nem é preciso que o amor seja a palavra.
"Penso em você" - me diz e estancarei os féretros,
tão grande é minha paixão.

O amor no éter

Há dentro de mim uma paisagem 
entre meio-dia e duas horas da tarde. 
Aves pernaltas, os bicos mergulhados na água,  
entram e não neste lugar de memória, 
uma lagoa rasa com caniço na margem. 
Habito nele, quando os desejos do corpo, 
a metafísica, exclamam: 
como és bonito! 
Quero escrever-te até encontrar 
onde segregas tanto sentimento. 
Pensas em mim, teu meio-riso secreto 
atravessa mar e montanha, 
me sobressalta em arrepios, 
o amor sobre o natural. 
O corpo é leve como a alma, 
os minerais voam como borboletas. 
Tudo deste lugar 
entre meio-dia e duas horas da tarde.


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