domingo, 9 de fevereiro de 2014

A Luta Corporal - Ferreira Gullar

Galo galo

O galo
no saguão quieto.

Galo galo
de alarmante crista, guerreiro,
medieval.

De córneo bico e
esporões, armado
contra a morte,
passeia.

Mede os passos. Pára.
Inclina a cabeça coroada
dentro do silêncio
- que faço entre coisas?
- de que me defendo?

Anda.
no saguão
O cimento esquece
o seu último passo

Galo: as penas que
florescem da carne silenciosa
e o duro bico e as unhas e o olho
sem amor. Grave
solidez.
Em que se apóia
tal arquitetura?

Saberá que, no centro
de seu corpo, um grito
se elabora?

Como, porém, conter,
uma vez concluído,
o canto obrigatório?

Eis que bate as asas, vai
morrer, encurva o vertiginoso pescoço
donde o canto rubro escoa.

Mas a pedra, a tarde,
o próprio feroz galo
subsistem ao grito.

Vê-se: o canto é inútil.

O galo permanece - apesar
de todo o seu porte marcial -
só, desamparado,
num saguão do mundo.
Pobre ave guerreira!

Outro grito cresce
agora no sigilo
de seu corpo; grito
que, sem essas penas
e esporões e crista
e sobretudo sem esse olhar
de ódio,
não seria tão rouco
e sangrento

Grito, fruto obscuro
e extremo dessa árvore: galo.
Mas que, fora dele,
é mero complemento de auroras.

P.M.S.L.

Impossivel é não odiar
estas manhãs sem teto
e as valsas
que banalizam a morte
Tudo que fácil se
dá quer negar-nos.
Teme o lúdibrio dos corolas.
Na orquídea busca a orquídea
que não é apenas o fátuo
cintilar das pétalas: busca a móvel
orquídea: ela caminha em si, é
contínuo negar-se no seu fogo, seu
arder é deslizar.
Vê o céu.
Mais que azul, ele é o nosso
sucessivo morer.
Ácido céu.
Tudo se retrai, e a teu amor
oferta um disfarce de si.
Tudo odeia se dar.
Conheces a água?
ou apenas o som do que ela finge?
Não te aconselho o amor.
O amor
é fácil e triste. Não se ama
no amor, senão
o seu próprio findar.
Eis o que somos: o nosso
tédio de ser. despreza o mar acessível
que nas praias se entrega, e
o das galeras de susto; despreza o mar
que amas, e só assim terás
o exato inviolável
mar autêntico!
O girassol vê com assombro
que só a sua precariedade floresce.
Mas esse
assonbro é que é ele, em verdade.
Saber-se fonte única de si alucina.
Sublime, pois, seria
suicidar-no:
trairmos a nossa morte
para num sol que jamais somos
nos consumirmos.

O TRABALHO DAS NUVENS 

Esta varanda fica
à margem
da tarde. Onde nuvens trabalham

A cadeira não é tão seca
e lúcida, como
o coração.
Só à margem da tarde
é que se conhece
a tarde: que são as
folhas de verde e vento, e
o cacarejar da galinha e as
casas sob um céu: isso, diante
de olhos.

e os frutos?
e também os
frutos. Cujo crescer altera
a verdade e a cor
dos céus. Sim, os frutos
que não comeremos, também
fazem a tarde
              ( a vossa
tarde, de que estou à margem).

Há, porém, a tarde
do fruto. Essa não roubaremos:
                       tarde
em que ele se propõe a glória de
não mais ser fruto, sendo-o
mais: de esplender, não como astro, mas
como fruto que esplende.

E a tarde futura onde ele
arderá como um facho
efêmero!

Em verdade, é desconcertante para
os homens o
trabalho das nuvens.
Elas não trabalham
acima das cidades: quando
há nuvens não há
cidades: as nuvens ignoram
se deslizam por sobre
nossa cabeça: nós é que sabemos que
deslizamos sob elas: as
nuvens cintilam, mas não é para
o coração dos homens.

A tarde é
as folhas esperarem amarelecer
e nós o observarmos.

E o mais é o pássaro branco que
voa -  e que só porque voa e o vemos,
voa para vermos. O pássaro que é
branco
não porque ele o queira nem
porque o necessitemos:
o pássaro que é branco
porque é branco.  

Que te resta, pois, senão
aceitar?
        Por ti e pelo
pássaro pássaro.  


AS PERAS

As peras, no prato,
apodrecem.
O relógio, sobre elas,
mede
a sua morte?

Paremos a pêndula.De-
teríamos, assim, a
morte das frutas?
Oh as peras cansaram-se
de suas formas e de
sua doçura! As peras,
concluídas, gastam-se no
fulgor de estarem prontas
para nada.
O relógio
não mede. Trabalha
no vazio: sua voz desliza
fora dos corpos.

Tudo é o cansaço
de si. As peras se consomem
no seu doirado
sossego. As flores, no canteiro
diário, ardem,
ardem, em vermelhos e azuis. Tudo
desliza e está só.
O dia
comum, dia de todos, é a
distância entre as coisas.
Mas o dia do gato, o felino
e sem palavras
dia do gato que passa entre os móveis
é passar. Não entre os móveis. Pas-
sar como eu
passo: entre nada.

O dia das peras
é o seu apodrecimento.

É tranquilo o dia
das peras? Elas
não gritam, como
o galo.

Gritar
para quê? se o canto
é apenas um arco
efêmero fora do
coração?

Era preciso que
o canto não cessasse
nunca. Não pelo
canto (canto que os
homens ouvem) mas
porque can-
tando o galo
é sem morte.

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