segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Macau - Paulo Henriques Britto

De Vulgari Eloquentia

A realidade é coisa delicada,

de se pegar com as pontas dos dedos.

Um gesto mais brutal, e pronto: o nada.
A qualquer hora pode advir o fim.
O mais terrível de todos os medos.

Mas, felizmente, não é bem assim.
Há uma saída – falar, falar muito.
São as palavras que suportam o mundo,
não os ombros. Sem o "porquê", o "sim",

todos os ombros afundavam juntos.
Basta uma boca aberta (ou um rabisco
num papel) para salvar o universo.
Portanto, meus amigos, eu insisto:
falem sem parar. Mesmo sem assunto.


Nove variações sobre um tema de Jim Morrison

4. 

Por que é que essa tarde desmancha e desmaia e
sufoca o que o dia erigiu por um triz?

Por que é que a manhã com esse estrépito todo
dissipa o que a noite a tal custo ajuntou?


Sete Sonetos Simétricos


VII
A escuridão começa pelas bordas
e vai seguindo até chegar ao centro,

lá onde uma semente aguarda a hora,
tranquilamente, sem medo do escuro:
poiis é da natureza das sementes

se afastar da luz, mergulhar no úmido,
sepultar-se por toda uma estação.
No entanto, neste caso a escuridão
é de outra espécie, mais seca e mais rasa,

uma que avança devagar e sempre,
alheia a qualquer propósito ou causa,
até só restar pedra sobre pedra.

Mas a semente espera. Ela é insistente,
e acerta mesmo sem saber que erra.


Dez Sonetóides Mancos

Não há razão para ter razão em nada.
Que precisão tem o amor de linhas retas
se paralelas afinal são nada mais

que a garantia do infinito desencontro?
Olhai à vossa volta, ó assinantes de jornais,
ó vós que devorais com bom proveito

as bulas abissais dos antiácidos,
quantas volutas de paixão não heis desfeito

com o desajeito de vossos membros tímidos,
a omissão de vossos sonhos flácidos?


Três Epifanias Triviais

As coisas que te cercam, até onde 
alcança a tua vista, tão passivas 
em sua opacidade, que te impedem 
de enxergar o (inexistente) horizonte, 
que justamente por não serem vivas 
se prestam para tudo, e nunca pedem
nem mesmo uma migalha de atenção, 
essas coisas que você usa e esquece 
assim que larga na primeira mesa – 
pois bem: elas vão ficar. Você, não. 
Tudo que pensa passa. Permanece 
a alvenaria do mundo, o que pesa.
O mais é enchimento, e se consome. 
As tais Formas eternas, as Ideias, 
e a mente que as inventa, acabam em pó, 
e delas ficam, quando muito, os nomes. 
Muita louça ainda resta de Pompeia, 
mas lábios que a tocaram, nem um só.
As testemunhas cegas da existência, 
sempre a te olhar sem que você se importe, 
vão assistir sem compaixão nem ânsia, 
com a mais absoluta indiferença, 
quando chegar a hora, a tua morte. 
(Não que isso tenha a mínima importância).

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