O nascimento do
poema
O que existe são coisas,
não palavras. Por isso
te ouvirei sem cansaço
recitar em búlgaro
como olharei montanhas
durante horas,
ou nuvens.
Sinais valem palavras,
palavras valem coisas,
coisas não valem nada.
Entender é um rapto,
é o mesmo que desentender.
Minha mãe morrendo,
não faltou a meu choro este
arco-íris:
o luto irá bem com meus
cabelos claros.
Granito, lápide, crepe,
são belas coisas ou palavras
belas?
Mármore, sol, lixívia.
Entender me sequestra de
palavras e de coisa,
arremessa-me ao coração da
poesia.
Por isso escrevo os poemas
pra velar o que ameaça minha
fraqueza mortal.
Recuso-me a acreditar que
homens inventam as línguas,
é o Espírito quem me impele,
quer ser adorado
e sopra no meu ouvido este
hino litúrgico:
baldes, vassouras, dívidas e
medo,
desejo de ver Jonathan e ser
condenada ao inferno.
A Batalha
Perdi o medo de mim. Adeus.
Vou às paisagens do frio
atrás do Jonathan.
Deve ser assim que se vive,
na embriagues deste vôo
no rumo certo da morte.
Amo Jonathan.
Eis aí o monocórdico,
diarréico assunto.
‘Ele quer te ver’, alguém me
disse no sonho.
E desencadearam-se as formas
onde Deus se homizia.
Pode-se adorar tufos de
grama , areia,
não se descobre donde vem os
oboés.
Jonathan quer me ver.
Pois que veja.
O diabo uiva algemado nas
profundezas do inferno,
enquanto eu
tiro o corpo da roupa.
A Terceira Via
Jonathan me traiu com uma
mulher
que não sofreu por ele
um terço do que eu sofri;
uma mulher turista
espairecendo na Europa.
Jonathan é bastante tolo.
Estou sem saber se me mudo
para alguém mais ladino,
se espero Jonathan crescer.
Sem desgastar-me, sem gastar
um tostão
o moço oferece-me
pensamentos diários
com irresistível margem de
perigos:
posso ficar tísica,
posso engordar,
posso entender de física,
posso jejuar
produzindo sua imagem na
hora mais quente do dia.
Ismália me diz: 'Deus é um
tijolo,
está aqui no nariz do meu
cachorro.
Eu sou puro pecado'.
E imediatamente come docinho
de aletria
com descansada certeza:
'Irei salvar-me porque Deus
me ama'.
Não tenho o peito de Ismália
pra chegar perto de Deus.
Por isso fico granindo
e chego perto dos homens,
cheiro a camisa de Pedro,
o travo ingrato de Jonathan.
Todos viram que minha boca
secou
quando disse muito prazer e
desfaleci na cadeira.
O amor me envergonha.
Da geração da cachaça,
do é ou não é,
do ou casa ou vai pro
convento,
não posso ser gay e dizer:
depende,
vou ver, vou tratar do seu
caso.
Comigo é na pândega
ou na santidade mais
rigorosa.
Eu não servia para ter
nascido,
para comer com boca, andar
com pés
e Ter dentro de mim oito
metros de tripas
desejando a filigrana de tua
íris
cuja cor não digo para não
estragar tudo
e novamente ficar coberta de
ridículo.
Sei agora, a duras penas,
porque os santos levitam.
Sem o corpo a alma de um
homem não goza.
Por isso Cristo sofreu no
corpo a Sua paixão,
adoro Cristo na Cruz.
Meu desejo é atômico,
minha unha é como meu sexo.
Meu pé te deseja, meu nariz.
Meu espírito – que é alento
de Deus em mim – te deseja
pra fazer não sei o quê com
você.
Não é beijar, nem abraçar,
muito menos casar
e ter um monte de filhos.
Quero você na minha frente
extático
– Francisco e o Serafim,
abrasados –,
e eu para todo o sempre
olhando, olhando, olhando...
Caderno de Desenho
Quem verazmente se importa
de que esteja tão abatida
com as respostas do oráculo?
Ele me ama? Perguntei.
Por quatro vezes respondeu
silêncio, conflito, infortúnio e outra vez silêncio.
Terá Vosso amor, ó Deus,
tanta beleza,
Vós que não tendes mãos, nem
pés,
nem aquele nariz perfeito
por quem ardo até a última
estrela?
Se Jonathan me amasse...
Mas quem me ama é João
e amo Jonathan desde os 12
anos,
desde a única boa lembrança
de irmã Guida
que ensinava desenho,
as formas escapando de
conselhos, doutrinas,
mais antigas que o pai, a
mãe,
mais antigas que o avô,
reclamando de mim uma
providência,
para que perdurassem, ficassem
ali comigo no caderno.
Eu desenhava mal
entusiasmadamente,
furando o papel com o lápis,
querendo expulsar de mim,
hoje sei
- e queria mais não saber -,
aquela beleza mortal.
Eu lutava com o Anjo,
com o Mensageiro que nunca
mais me deixou.
Que nome tem o que não
morre?
O nome de Deus é qualquer,
pois quando nada responde,
ainda assim uma alegria
poreja.
Sibilação
Na falha do dente mesma
ou entre ela e a estrela
vermelha sobre o rio
cabe aviões e perguntas.
Fazem tediosas sentenças
sobre meu vestido e cabelos
enquanto eu faço um livro
que, segundo comadre minha,
'deixa muitas recordações'.
Meu aspecto campônio
já perturbou um moço
refinado
e passei maus bocados
com minha mãe me
infernizando o ouvido:
'vai arear seus pezinhos
à-toa,
esse tal de Notajan
casa é com moça rica'.
Preferível seu ódio
a ouvir o nome querido
massacrado em sua boca.
Ó Jonathan, as palavras me
matam,
as perfeitas e as cruas.
Milho, pó de café, sabão,
minha pobre mãe me preparou
pra vida,
este vale de lágrimas.
Vale de lágrimas! Que
palavra estupenda!
Assim diria, se soubesse,
em toda língua humana
conhecida,
vale de lágrimas!
Os olhos da humanidade se
exaurindo,
enchendo gargantas,
fossos entre os penhascos,
até virar um mar,
um mar salgado e amargo.
Mar, não, até virar um rio,
porque dizer assim vale de
lágrimas não é desesperado como o mar,
nem tão imenso.
O rio tem margens,
margens espraiam-se,
vegetação, animais,
guardadores de gado,
o grito é ouvido.
O Despautério
Insinua-se a tentação de
rejeitar a forma
e não sei se vem do Bem ou
do Mal.
Um enfado pelo que só se
mostra
à força de palavras desse
e não de outro jeito dispostas.
É quando mais sei que não
sou Deus.
Jonathan, Jonathan,
minha mãe não aprende a
soletrar seu nome,
seu ódio desloca as tônicas
e mais ainda os motivos
de seus terríveis conselhos.
Também quero infringir.
Quem ama mata o cacófato,
acha bonita a ruidosa
máquina do corpo.
-Tens dormido bem, meu pai?
Muito bem, respondia
informando inocente sobre
galos,
choro noturno de
recém-nascidos.
Mas este relato é belo.
Se a mãe tiver razão estou
perdida.
Sempre disse: a poesia é o
rastro de Deus nas coisas
e cantava o rastro,
quando é aos pés que se deve
adorar.
Pobre beleza esta,
serva agrilhoada,
passarinho cego trinando.
No entanto está escrito:
"sois deuses!"
E somos.
Quero me oferecer à
divindade
na mais perfeita pobreza
e ela só me recebe
na mais perfeita alegria.
Dentro da lâmpada acesa
o núcleo parece um ovo,
parece um pintinho novo.
Preciso mentir um pouco
para que o ritmo aconteça
e eu própria entenda o
discurso.
Faça-se a dura vontade
do que habita meu peito:
vem, Jonathan,
traz flores pra minha mãe
e um par de algemas pra mim
Raiva de Jonathan
Fui te procurar na rua e
meti a cabeça no poste
sangrou, solucei, dormi,
sonhei com astros movendo-se e formas vegetais humanizadas
O corpo é pagão e assim deve
ficar para que lembre Deus constantemente seu dever de salvar-nos
Me desgosta este arpejo de
líquidos no seu abdomen branco, homem mortal e cruel
Sai pra lá, cachorrinho
imbecil, vai passar fome hoje, o osso é meu
As más companhias te perdem,
meu amor, e exaurem teu poder de construir bons versos
Você se distrai, me esquece,
dá entrevistas pernósticas
Um ovo de duas gemas ao mais
frio dos homens há de comover, não a mim, não hoje
que não quero saber da barra
grega
Desenho mal, é verdade, mas
precisava irmã Gui exibir-se às minhas custas?
Se Brígida me provocar vou
lhe dizer assim como um doutor: o mal que você faz é inconsciente, Brígida
Só isso vai lhe humilhar
tanto quanto desejo, limpar a gosma desses versos horrendos
Rubor, febre, pudicícia,
minha honra feminina em convulsão
percutindo em meu peito
outra sônica, a retornada cíclica paixão
Sai travesti poético, arre,
credo
Mas como eu ia dizendo, vem,
Jonathan,
qualquer hora é hora, o que
vale é ser feliz
mas vale um pássaro na mão.
Vem, oh, galante,
do que dois avoando.
Imploro-te, mas vem logo,
desgraçado, senão eu te furo
e não tou nem aí.
Vestida de noiva vais me
achar discursando com um repolho na mão:
querida massa, exelentíssima
massa, vais ficar tão bonito no caixão
Só uma coisinha à toa me
detém de cometer o crime
como será depois, quando me
deparar com o desmazelo
sua desgraciosa, úmilima,
utilíssima forma?
E a quem servirá a palavra
de Isaías que escreveu para mim o seu oráculo:
"dêem forças aos
joelhos vacilantes, o coxo saltará como um cabrito"
Hein, Jonathan? Responde!
Pranto para comover Jonathan
Os diamantes são
indestrutíveis?
Mais é meu amor.
O mar é imenso?
Meu amor é maior,
mais belo sem ornamentos
do que um campo de flores.
Mais triste do que a morte,
mais desesperançado
do que a onda batendo no
rochedo,
mais tenaz que o rochedo.
Ama e nem sabe mais o que
ama.
O Sacrifício
Não tem mar, nem transtorno
político,
nem desgraça ecológica
que me afaste de Jonathan.
Vinte invernos não bastaram
pra esmaecer sua imagem.
Manhã, noite, meio-dia,
Como um diamante,
meu amor se perfaz,
indestrutível.
Eu suspiro por ele.
Casar, ter filhos,
foi tudo só um disfarce,
recreio,
um modo humano de me dar
repouso.
Dias há em que meu desejo é
vingar-me,
proferir impropérios:
maldito, maldito.
Mas é a mim que maldigo,
pois vive dentro de mim
e talvez seja Deus fazendo
pantomimas.
Quero ver Jonathan e com o
mesmo forte desejo
quero adorar, prostrar-me,
cantar com alta voz Panis
Angelicus.
Desde a juventude canto.
Desde a juventude desejo e
desejo
a presença que para sempre
me cale.
As outras meninas bailavam,
e eu estacava querendo
e só de querer vivi.
Licor de romãs,
Sangue invisível pulsando na
presença Santíssima.
Eu canto muito alto:
Jonathan é Jesus.
O Pelicano
Um dia vi um navio de perto.
Por muito tempo olhei-o
com a mesma gula sem pressa
com que olho
Jonathan:
primeiro as unhas, os dedos,
seus nós.
Eu amava o navio.
Oh! eu dizia. Ah, que coisa
é um navio!
Ele balançava de leve
como os sedutores meneiam.
À volta de mim busquei
pessoas:
olha, olha o navio
e dispus-me a falar do que
não sabia
para que enfim tocasse
no onde o que não tem pés
caminha sobre a massa das
águas.
Uma noite dessas, antes de
me deitar
vi - como vi o navio - um
sentimento.
Travada de interjeições,
mutismos,
vocativos supremos
balbuciei:
Ó Tu! e Ó Vós!
- a garganta doendo por
chorar.
Me ocorreu que na escuridão
da noite
eu estava poetizada,
um desejo supremo me queria.
Ó Misericórdia, eu disse
e pus minha boca no jorro
daquele peito.
Ó amor, e me deixei afagar,
a visão esmaecendo-se,
lúcida, ilógica,
verdadeira como um navio.
A Criatura
Quero ver Jonathan,
Aqui ou onde mora
Exilado de mim.
Está meio chuvoso e é
domingo,
feito um domingo antigo,
quando Ormírio chegou com
Antônia,
sua filha de criação,
e me deu um cacho de uvas.
Da mesma natureza é a
saudade que sinto
por aquele domingo e por
Jonathan.
Como Antônia era tola eu era
feliz,
o eixo da terra girava
devagar,
eu cantava
a propósito de tudo,
a música de que mais
gostava.
Quando me apaixonei por
Jonathan,
escrevia seu nome pela casa,
meu pai dizia: ‘o que é
isso?’
é o nome de um príncipe, eu
falava,
Pronuncia-se Narratanói e
está nas
mil e uma noites…
Meu pai, plebeu
a quem certas palavras
subjugavam,
orgulhava-se de mim
que lhe dava poder sobre os
signos migrados.
Oh, Jonathan, descubro que
te amo
desde o tempo da guerra,
quando os aliados batiam os
alemães.
Vovô dizia usaliados
e até mamãe, imagine!
E principalmente eu:
‘usaliados’ vão ganhar a
guerra’,
sabendo por divina
inspiração:
‘o poder é de quem detém a
palavra’.
Poder que ia usar contra
você,
que teria minha mãe usado
contra mim:
‘você é da classe operária,
ele é muito bonito,
vai te deixar sozinha!’
Não deixou minha mãe, como
não me deixa
apesar dos pesares,
esta vocação para a alegria
perfeita.
Vê, são passadas décadas
e é a mesma em mim
a prontidão para a chuva,
as goiabas verdes,
para o sol que ateia nos
telhados
as labaredas brancas do
meio-dia.
É como se estivésseis aqui
com meu pai, meu avô
Ormírio e o cacho de uvas,
como quando entoei
impropriamente,
à véspera de um Natal o
Tantum Ergo.
Que grande cortesã eu me
ensaiava,
porque era uma orgia
aquela felicidade sobre
nadas,
era tudo tão pobre.
Eu já amava Jonathan,
porque Jonathan é isto,
fato poético desde sempre
gerado,
matéria de sonho, sonho,
hora em que tudo mais desce
à desimportância.
Agora que me descido à
mística,
escrevo sob seu retrato:
‘Jesus, José, Javé,
Jonathan, Jonathan,
a flor mais diminuta é meu
juiz.
Me deixem no deserto
resgatada,
pedra que dentro é pedra,
sobre pedra pousada’.
Rimo por boniteza,
não é triste o que sinto.
‘A supliciada’ podíeis
chamar a tais versos,
no entanto, confirmo, estou
feliz,
feliz para o desperdício
do que busquei amealhar
e estava certa,
o que o tempo não rói.
Um mel derrama-se,
uma ave amorosa me alimenta.
Negro céu com relâmpagos
e esta doçura que não tem
repouso.
São feitos para mim estes
legumes,
mais que as flores são
feitos para mim
que os converto no ventre em
ouro simbólico.
Nada há mais parecido com o
que sou
a não ser outro homem e
outro mais
e mais outro homem.
A visão de um recém-nascido
me transporta.
Experimento dizer: ‘dentro
da terra
sobre os leitos de areia os
lençóis d’água’;
é como ferir o peito com uma
lança
estremeço de amor pelas
torrentes,
como de amor por Jonathan.
Os peixes gostam de mim, os
fetos.
Antes que o façam eu abraço
os homens,
eu os desarmo,
como a abelha em seu afinco
trabalho para que entendam:
a vida é tão bonita,
basta um beijo
e a delicada engrenagem
movimenta-se,
uma necessidade cósmica nos
protege.
Os espíritos imundos confessavam
o Cristo,
se enfiavam nos porcos
confessando,
essa alegria nova me
confessa,
a mesma, a antiga,
a de quando ganhei as uvas e
chovia
e gostava de Antônia
aquela menina tola.
‘A ira bordeja como um peixe
mau’
É só um verso bonito.
Não há como voltar deste
país:
o homem à janela canta
– sem ter costume – a
melodiazinha.
Deus põe no céu o arco-íris,
uma palavra selada,
seu hieróglifo.
Não tenho mais tempo algum,
ser feliz me consome.
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